CAUSAS IMUNOLÓGICAS, TROMBOFILIAS E VACINAS

Problemas imunológicos têm sido responsabilizados por alguns casos de AR, entretanto a literatura médica nesse assunto é controversa. Entre os problemas imunológicos com possível associação com AR, estão:

Células natural killers (NK): são linfócitos com receptor CD56+ presentes em sangue periférico e no útero. O aumento de sua expressão no útero tem sido relacionado à falha de implantação e aborto. Dosagem sanguínea não reflete a expressão endometrial e não tem valor. A dosagem no endométrio pode ser feita colhendo-se material por biópsia durante uma histeroscopia realizada no período após a ovulação e encaminhada para análise por imuno-histoquímica. Entretanto, não há consenso na literatura sobre o que é considerado um número normal de células NK no endométrio. Há autores que consideram valores acima de 10% como aumentados, outros, valores acima de 5%. Quando aumentados, podem ser utilizados corticosteroides (como prednisona 20 mg/dia), entretanto há controvérsia se realmente esse tratamento reduz a taxa de aborto.

Incompatibilidade de antígenos leucocitários entre o casal: a gestação pode ser considerada um aloenxerto, uma vez que o embrião é como um corpo estranho, geneticamente diferente da mãe. Para isso, o sistema imune materno tem que se adaptar para não “rejeitar” o embrião. Paradoxalmente, a disparidade genética entre os antígenos HLA materno e paterno é importante na implantação e no desenvolvimento do embrião, pois induz uma resposta imune ativa, porém protetora. Casais que compartilham antígenos HLA apresentam maior probabilidade de sofrerem abortos. Isso pode ser avaliado pelo exame cross-match, que pesquisa a presença de anticorpos contra linfócitos paternos no sangue da mãe. Para fazer essa pesquisa retiram-se amostras de sangue do homem e da mulher e, em laboratório, realiza-se uma prova cruzada entre os dois, para identificar a presença de anticorpos. Se não estiverem presentes, pode ser indicada a terapia imunizante, ou seja, a transfusão de leucócitos paternos. Essa imunização é realizada com a coleta de sangue paterno, do qual são separados os linfócitos e com eles preparadas as vacinas que depois serão injetadas na mãe pela via intradérmica. São feitas duas ou três aplicações com espaço de tempo de três semanas entre elas. Após o término dessa série, o cross-match é repetido, confirmando se houve a virada do resultado anterior para positivo. Se não tiver acontecido essa virada, uma nova série de duas aplicações será realizada. Quando a paciente engravida, nova dose deve ser aplicada.

O mecanismo de ação dessa terapia não está claro, porém parece relacionado à formação de anticorpos com propriedade imunossupressora, além de outras alterações imunes. Apesar de muitos autores defenderem seu uso, não há evidência científica suficiente que confirme o valor de se pedir cross-match e a utilização dessas vacinas. Seu uso nos Estados Unidos não é liberado pela FDA (Food and Drug Administration), assim como em vários países. No Brasil, as vacinas são liberadas, entretanto é importante deixar claro que essa pesquisa e o tratamento só devem ser realizados após a exclusão de todas as outras possibilidades de diagnóstico, sendo explicado ao casal que isso ainda não está estabelecido na literatura médica.

Outros tratamentos imunológicos: tem sido sugerido também o uso de imunoglobulina e G-CSF (granulocyte colony-stimulating factor) em mulheres com AR, mas ainda não há evidência suficiente para recomendar seu uso. Corticoterapia de rotina para AR também não demonstra benefício.

Trombofilias

Síndrome do Anticorpo Antifosfolípede (SAAF): é caracterizada pela associação de anticorpos antifosfolípedes com complicações obstétricas ou trombose. É a principal causa tratável de AR, presente em até 15% das pacientes, contra 2% de frequência em mulheres em geral. O mecanismo patológico que leva ao aborto se deve à inibição da função e diferenciação trofoblástica, ativação da via do complemento na interface maternofetal levando a processo inflamatório e, tardiamente, a trombose dos vasos placentários. Para se definir como SAAF, é necessário ter pelo menos um critério clínico e um laboratorial:

Critérios clínicos:

  • Trombose vascular (um ou mais episódios): arterial, venoso ou pequenos vasos;
  • Complicações obstétricas:
  • Morte inexplicada de feto normal após dez semanas de gestação;
  • Parto prematuro antes de 34 semanas devido a pré-eclampsia, eclâmpsia ou insuficiência placentária;
  • Três ou mais abortos espontâneos consecutivos inexplicáveis antes de dez semanas de gestação.

Critérios laboratoriais:

  • Anticorpo anticardiolipina (aCL) (IgM e/ou IgG): presente no sangue em níveis moderados ou altos por teste ELISA padronizado*;
  • Anticoagulante lúpico (AL): detectado no plasma de acordo com as recomendações da Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia*;
  • Anti-β2glicoproteína I (β2GPI) IgG ou IgM: presente no plasma por teste ELISA padronizado*.

*em pelo menos duas medidas com intervalo de pelo menos 12 semanas.

A SAAF pode se manifestar isoladamente ou em associação com lúpus erimatematoso sistêmico. Existem ainda outros achados que não são critérios diagnósticos, mas que podem estar associados à síndrome, como:

  • Livedo reticularis;
  • Trombocitopenia;
  • Nefropatia;
  • Alterações neurológicas;
  • IgA aCL e IgA β2GPI;
  • Anticorpo antifosfatidilserina;
  • Anticorpo antifosfatidiletolamina.

Pacientes com AR e SAAF necessitam de tratamento sempre, uma vez que, quando presente e não tratada na gestação, leva a uma taxa de menos de 10% de nascidos-vivos. O tratamento se faz com AAS 100 mg/dia e heparina subcutânea em dose profilática. Pode ser utilizada heparina não fracionada (HNF) 5.000 UI a cada 12 horas ou dose única diária de heparina de baixo peso molecular (HBPM): enoxaparina 40 mg ou dalteparina 5.000 UI. A heparina não só tem o efeito antitrombótico de vasos placentários como atua na função trofoblástica e via do complemento, também envolvidas na fisiopatologia da doença. Um efeito colateral da terapia com heparina é a plaquetopenia e, portando, a quantidade de plaquetas deve ser monitorada com hemograma. Em relação a HNF e HBPM, não há diferença de eficácia clínica, mas a HBPM tem a vantagem de ser dose única diária e provocar menos frequentemente plaquetopenia em comparação à HNF. Uso de corticoide não mostra benefício.

Uma discussão que existe é quando a paciente apresenta alguns critérios para SAAF, mas que não completam o diagnóstico. Não é consenso, mas na presença de algum dos achados clínico/laboratoriais, mesmo que não completos, o tratamento pode ser instituído, frente à grande morbidade da doença. Nesses casos, pode ainda falar a favor do tratamento a presença dos outros achados clínicos e laboratoriais que não são critérios.

Outras trombofilias: existem outras trombofilias inatas que poderiam estar associadas a AR, embora estejam mais relacionadas com perdas fetais tardias, por trombose dos vasos placentários. São elas:

  • fator V de Leiden – mutação G1691A;
  • mutação G20210A do gene da protrombina;
  • deficiência de Proteína S;
  • deficiência de Proteína C;
  • antitrombina III;
  • mutação C677T e A1298C da Metilenotetrahidrofolato redutase (MTHFR);
  • homocisteína;
  • antifosfatidilserina.

A relação dessas trombofilias com aborto de repetição ainda é um assunto controverso, assim como a necessidade de heparina nesses casos. Apesar de não ser consenso, existe uma tendência a se tratar pacientes com AR na presença de alguma dessas trombofilias.